A educação da alma pelo corpo
Ao sair de manhã, vejo meninas
pulando corda no pátio. Sua alegria espontânea invade nosso prédio. No
semáforo, junto a um malabarista, um rapaz em cadeira de rodas exibe
maestria com a bola de basquete. Os dois
estão a serviço, orgulhosos por seu desempenho. Na colina ao lado do caminho
que percorro, garotos empinam pipas. Brincam, mas com o empenho de quem
trabalhasse. Chego à universidade desviando de meninos que jogam bola e dividem
o espaço livre do estacionamento com skatistas. Disputam entre si, pois a graça
do esporte depende do adversário.
Nessas cenas urbanas,
crianças e jovens desafiam a si mesmo no desenvolver contínuo do corpo e da
mente. Isso se dá na prática de habilidades físicas, na estética da avaliação
de movimentos e na ética das regras do jogo. O sentido lúdico só reforça a
formação integral, pois preparar skates e pipas, por exemplo, demanda
disciplina pessoal. Organizar partidas, por sua vez, exige planejamento
coletivo e competência social. Todos estudam, mas nem todas as etapas escolares
mobilizam corpo e mente.
Especialmente na Educação
Infantil se dá continuidade à formação familiar para o afeto, a alimentação e a
higiene. Nessa fase, o corpo é
central para a realização de práticas como o canto, a dança, o desenho e os
jogos. Os pequenos gostam de ir a essas escolas, em que seu desenvolvimento
socioafetivo passa pelo afago da professora e pelos esbarrões ou abraços dos
colegas. A avaliação não se restringe ao cognitivo, pois se quer saber eles
estão felizes e saudáveis.
À medida que a criança avança
as séries, no entanto, é comum seu corpo se tornar mero portador de mente e seu
bem-estar só merecer atenção se interferir nas notas, pois disciplinas
limitadas ao cognitivo não tratam de aspectos corporais ou socioafetivos.
Quando o ensino é assim, a Educação Física se desvaloriza em suas dimensões ética,
estética e prática, que dariam continuidade à formação do ser que brinca e
joga. O que se vê, então, é muita gente que detesta ir à aula ou que recebe
equivocados diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH).
Não por acaso, a sociedade
em que escolas ignoram o corpo também vive um lamentável culto ao corpo, a
cultura da malhação a serviço de uma estética ditatorial, que condena
baixinhos, magrelos e gordos e exclui dos palcos e das telas quem não atenda a
seus padrões, exceto para ridicularizar seu tipo destoante. Disso decorre a
abominação das diferenças, que dá lugar ao bullying,
o assédio moral para a infelicidade de muitos.
Mas onde está o corpo nas
outras disciplinas, além da Educação
Física? Em Ciências, nas escolas onde falar da maquina que come e se reproduz
não é só prevenção mas também sabor e prazer, ao ensinar gosto por cozinhar e a
alegria e a ética nos jogos e no amor. Está em Artes, se há lugar para a
produção individual e coletiva, além da apreciação da pintura, da musica e do
teatro. Está em História, em Geografia e na literatura, se a diversidade de
etnias ,tipos físicos, vestuários e
expressões revelar a riqueza da vida.
Ilustro
isso com emoção recente que vivi no doutoramento de minha amiga Maria Amália Barbosa,
paralisada há anos por acidente cerebral e depois consagrada pelo trabalho com
crianças tetraplégicas, que são levadas a museus e a um ateliê, onde seus
poucos movimentos são valorizados em trabalhos de Arte, e seu corpo, desenhado
ou carimbado em lindas telas. Esse é um exemplo definitivo de que todos nós,
jovens ou velhos, exuberantes ou fragilizados, podemos nos realizar com o corpo
com que trabalhamos e amamos. Aliás, é com ele que vamos ou fomos à escola,
que, portanto, não pode ignorá-lo.
Luis Carlos de Menezes
Físico e educador da Universidade de São Paulo (USP)
Físico e educador da Universidade de São Paulo (USP)
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